‘O arranjo institucional que caracterizava a Nova República acabou’

Para pesquisadora, militares aparecem como força auxiliar do presidente eleito em um novo contexto, mas politização das Forças Armadas não é consenso entre generais e põe em xeque a própria hierarquia
 
 

São Paulo – O presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) já anunciou desde sua campanha que contará com a presença de integrantes das Forças Armadas em postos usualmente destinados a civis. Entre os 27 primeiros nomes da equipe de transição nomeados oficialmente, sete são militares: três da Aeronáutica, dois do Exército e dois bombeiros.

De acordo com a pesquisadora e professora assistente no Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po) Anaís Medeiros Passos, deslocar membros das Forças Armadas de sua função primordial, que é a defesa externa, para outras áreas, não é a solução ideal. “Colocar militares em áreas não-militares é um ‘tapa buraco’, porque não resolve a falta de preparo de burocratas civis para ocupar os ministérios. Se há corrupção, não temos solução mágica, porque os mesmos incentivos informais para atos de corrupção continuarão presentes.”

Anaís, que tem especialização na América Latina, segurança internacional e política comparada, também lamenta a continuidade de uma “novidade” institucional que teve início no governo Temer: o Ministério da Defesa ter como titular um militar. A pasta, criada em 1999 no governo Fernando Henrique Cardoso, é considerada peça-chave nos regimes republicanos para o exercício da autoridade civil e foi uma etapa importante no processo de redemocratização do país.

“O ministro da Defesa tem a função de atuar como um ‘diplomata’ na negociação entre as demandas dos militares e a política governamental. Portanto, continuar apontando militares como ministros da pasta gera um desequilíbrio nessa relação na medida em que o ministro torna-se um porta-voz unilateral das instituições militares. Não vejo como o país ganha com tal decisão”, questiona.

A pesquisadora ressalta que o processo de politização das Forças Armadas não é um consenso entre seus integrantes e o contexto atual é distinto daquele que resultou na instauração da ditadura em 1964. Como um processo movido de “baixo para cima”, em dado momento pode colocar em risco a noção hierárquica. “Se alguns generais se posicionam pela candidatura de Bolsonaro, o movimento é disperso, concentrado principalmente ao interior do Exército, o que implica em pouco controle da cúpula militar sobre a politização. Isso gera contradições que podem debilitar a hierarquia dos comandantes sobre as tropas, na medida em que esta se identifica claramente com um ‘semelhante’: Bolsonaro, o capitão reformado do Exército.”

“A identificação com militares de baixa patente é clara quando o candidato afirma que: ‘Nesse momento, eu não sou capitão e ele (Mourão) não é mais candidato: somos soldados deste Brasil’. Dissolvendo a hierarquia que separa um capitão, um general de um simples soldado, esse paralelo consolida igualmente a comunicação com a classe média brasileira, a partir de sua fusão em uma massa que estaria servindo a um fim maior, a defesa do que imaginam como a sua pátria.”

Confira abaixo a íntegra da entrevista concedida por e-mail.

No governo Temer, pela primeira vez houve um militar à frente do ministério da Defesa e Bolsonaro vai seguir nessa estratégia, inclusive reforçando as atribuições da pasta. Como você vê isso diante dos objetivos iniciais que nortearam a criação do ministério?

Colocar um militar na direção da pasta é um retrocesso em termos da consolidação do controle das autoridades civis sobre as Forças Armadas. Ou seja, a capacidade dos políticos e sociedade civil de limitar o comportamento autônomo daqueles que detêm as armas. Se as consequências de maior autonomia corporativa não são claras neste momento, ela torna mais difícil o estabelecimento de checks and balances sobre os militares – necessário em qualquer democracia avançada.

O Ministério da Defesa foi criado para centralizar as decisões sobre a política de defesa em uma só instituição. O ministro da Defesa tem a função de atuar como um “diplomata” na negociação entre as demandas dos militares e a política governamental. Portanto, continuar apontando militares como ministros da pasta gera um desequilíbrio nessa relação na medida em que o ministro torna-se um porta-voz unilateral das instituições militares. Não vejo como o país ganha com tal decisão. 

Também no governo Temer a pasta do Gabinete da Segurança Institucional, que havia sido incorporada à Secretaria de Governo no segundo mandato de Dilma Rousseff, ganhou status de ministério e passou a ter mais relevância com Sergio Etchegoyen participando ativamente dos rumos da gestão. Agora, o nome anunciado primeiramente como ministro da Defesa, general Augusto Heleno, foi deslocado para o GSI. Como você avalia a importância que essa pasta tem adquirido?

O Gabinete da Segurança Institucional acumulou poder desde as administrações de FHC e Lula e historicamente, desde sua criação em 1999, foi presidido por um general. Claro que isso gera um problema de controle civil, porque a maior agência de inteligência do país, a Agência Brasileira de Inteligência, é subordinada a este gabinete e não tem contato direto com o presidente.

O GSI já tinha o status de ministério, perdeu em 2015 e agora retomou. A pasta tem uma função de assessorar o presidente e é um elo entre os ministérios. Esse órgão ganhou relevância com o agravamento da crise política no Brasil que culminou na renúncia de Dilma Rousseff, já que no país a diversidade de partidos faz com que o partido do presidente eleito tem menos votos que o necessário para ter a maioria no Congresso. O Gabinete tem ganhado relevância nessa negociação entre partidos que caracteriza o presidencialismo brasileiro, com um espaço de tomada de decisão imediata. Agora, vale lembrar que a equipe do GSI é diversa, e abrange não só militares, mas também diplomatas, engenheiros, burocratas civis etc. 

Com a intervenção federal no Rio de Janeiro, entre outras iniciativas, Temer já havia trazido os militares de volta à cena política, e Bolsonaro anunciou que isso será aprofundado. As relações civis-militares ficam abaladas e ainda mais confusas no Brasil?

O envolvimento dos militares brasileiros com a política não é novidade. É verdade que, a nível discursivo, a candidatura de Jair Bolsonaro recorre à mesma argumentação que sustentou a intervenção de Forças Armadas na política entre 1930 e 1964: partindo de uma suposta superioridade moral adquirida por meio da socialização nas escolas militares, estes aparecem, simultaneamente, como imunes à corrupção e capazes de por fim instantaneamente a esta. O corrupto é visto como imoral e mesquinho, que deve ser “varrido do país”, em nome da defesa da pátria. Sua intervenção na política adquire, por consequência, um caráter de urgência.

O paralelo com este passado, entretanto, necessita ser matizado à luz de processos contemporâneos. O primeiro é o maior controle da hierarquia militar sobre o ensino dos oficiais de baixa patente, o que implica, visivelmente, o distanciamento destes soldados em relação a movimentos de esquerda. Por exemplo, não vimos soldados aderirem de maneira massiva a manifestações de 2013 contra as tarifas de transporte público; ou aliados ao PSOL.  A segunda modificação é um certo receio de parte da hierarquia militar em se posicionar abertamente em relação ao processo político. Se por um lado o comandante do Exército, General Villas Boas, declarou-se às vésperas do julgamento do ex-presidente Lula estar “atento às suas missões institucionais”, em geral a cúpula militar tem se mantido com uma distância relativa do processo eleitoral. Por esses fatores, não vejo riscos de termos uma nova ditadura militar. O contexto político, a sociedade civil e as instituições militares não são as mesmas dos anos 1960.

 

A politização das Forças Armadas gira em torno de um candidato em específico e tem um movimento de baixo para cima. Ou seja, a partir de oficiais de média ou baixa patente. Se alguns generais se posicionam pela candidatura de Bolsonaro, o movimento é disperso, concentrado principalmente ao interior do Exército, o que implica em pouco controle da cúpula militar sobre a politização. Isso gera contradições que podem debilitar a hierarquia dos comandantes sobre as tropas, na medida em que esta se identifica claramente com um “semelhante”: Bolsonaro, o capitão reformado do Exército. A identificação com militares de baixa patente é clara quando o candidato afirma que: “Nesse momento, eu não sou capitão e ele (Mourão) não é mais candidato: somos soldados deste Brasil”. Dissolvendo a hierarquia que separa um capitão, um general de um simples soldado, esse paralelo consolida igualmente a comunicação com a classe média brasileira, a partir de sua fusão em uma massa que estaria servindo a um fim maior, a defesa do que imaginam como a sua pátria. 

 

Quais os efeitos para a estrutura da administração pública federal de uma ingerência maior de militares?

Essa pergunta é complexa, até porque não temos a nomeação oficial dos ministros de Bolsonaro. Então, a minha resposta é prospectiva. Colocar militares em áreas não-militares é um “tapa buraco”, porque não resolve a falta de preparo de burocratas civis para ocupar os ministérios. Se há corrupção, não temos solução mágica, porque os mesmos incentivos informais para atos de corrupção continuarão presentes. Além disso, existe o risco latente de que os militares também se envolvam em esquemas de desvio de dinheiro público, como ocorria no Estado Novo. Então, pode mais uma vez diminuir o seu profissionalismo e grau de preparo na sua função principal, que é a defesa externa.

 

De uma forma geral, esse novo desenho com a nomeação de militares em áreas não relacionadas às atribuições das Forças Armadas significa um retrocesso no arranjo institucional feito durante o período da redemocratização?
O arranjo institucional que caracterizava a Nova República acabou. Isso se deve a uma série de fatores, incluindo uma maior fragmentação partidária e  maior competitividade eleitoral. O PSL quebrou um padrão de pelo menos 16 anos, qual seja, a polarização entre PT e PSDB nas eleições presidenciais.

Além disso, vemos emergir uma nova direita que não tem vergonha de mostrar o seu conservadorismo, como o politólogo Timothy Powell notou. Os militares aparecem como uma força auxiliar do presidente nesse novo arranjo institucional, já que estão em última instância subordinados a ele. Mas, como falei, esse processo de politização dos militares não é isento de oposições entre os generais. Então, mais que retrocessos, eu diria que um novo ciclo político, e de disputas, está começando.

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