Destruição e morte como ação de Estado: da proteção e dos direitos sociais ao extermínio social seletivo

Em artigo, presidente da NCST elenca as etapas da destruição social potencializada no ano de 2016 que levaram o país ao atual estágio de caos. 

por José Reginaldo Inácio


MATEUS 23, 27-32
Naquele tempo, disse Jesus: “Ai de vós, mestres da Lei e fariseus hipócritas! Vós sois como sepulcros caiados: por fora parecem belos, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e de toda podridão! Assim também vós: por fora, pareceis justos diante dos outros, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e injustiça. Ai de vós, mestres da Lei e fariseus hipócritas! Vós construís sepulcros para os profetas e enfeitais os túmulos dos justos, e dizeis: ‘Se tivéssemos vivido no tempo de nossos pais, não teríamos sido cúmplices da morte dos profetas’. Com isso, confessais que sois filhos daqueles que mataram os profetas. Completai, pois, a medida de vossos pais!”

Quando executivo, legislativo e judiciário se juntam para pactuar sobre o mal-estar social, acende o alerta de que esse mal pode ser mais letal: a destruição, além de sumária, pode ser legitimada definitivamente. A história tem mostras variadas disso. É como se fosse um rastilho de pólvora com capilaridade espalhada para atingir a todos estratos vulneráveis e necessitados de proteção em uma sociedade.

Por aqui tento demonstrar três etapas desta destruição, apesar delas figurarem apenas uma das partes da razão que pode expor uma marca até tida por alguns como pessimista, contudo necessária para que a vontade de uma ação transformadora da realidade se realize. Trata-se “de ter a capacidade de persistir ao longo do tempo na lucidez do pessimismo otimista [razão e vontade], tal é a arte instável e urgente do inconformista”. É aí que me situo. Dessa forma, contrapor qualquer fundamento deteriorador (teórico ou legal) das transformações sociais que conferem ou conferiram certa dignidade humana ao povo, especialmente à classe trabalhadora, é ação prioritária do sindicalismo, de pesquisadores e intelectualidade engajados na luta e na resistência diária ao mal-estar social que assola o país.

Compreender qual é o peso do alheamento caracterizado no voto ao se consagrar no sufrágio os elementos caracterizadores da atual ausência de democracia real na qual vivemos, é fundamental. Ao nutrir a miséria e a ignorância (não só por negar a ciência) perde-se a liberdade, seja pela fome ou pelo desconhecer. Impede-se o livre arbítrio. Até mesmo os movimentos elementares de pertencimento classista desaparecem. Estratos reais da alienação impedem a vinculação das possibilidades reais de se realizar com a política as transformações da realidade social. A chancela do voto para as “representações do povo”, é na verdade a escala hierárquica de uma estrutura – renovada ou não – imposta e mantida, por meio do dito ato “democrático”, para tomar conta do Estado.

Como governo, se foi dada a chancela do voto, nesse caso, lá em 2018, às elites econômicas/empresariais, acompadradas aos poderes instituídos, basta executar o plano (a destruição): usar de todas as formas e meios para garantir uma supremacia racial (branca e rica), machista, escravocrata, xenofóbica e misógina (todas de origem), cuja estrutura já é quase a visão concreta de um fenótipo derivado da mutação genética das piores espécies políticas e humanas ativas num só governo, é o que é feito.

Etapas de destruição social a partir de 2016

As armas de ataque para destruir de modo rápido, sumário, proteção e direitos sociais, impondo-nos o extermínio social seletivo em que vivemos, tiveram seus gatilhos acionados desde que as hostes antidemocráticas tomaram “de posse” os Poderes da República em 2016, a partir do governo Temer.

A primeira etapa da destruição: dos direitos fundamentais – inicia-se com a Emenda Constitucional 95, de 2016 (EC 95/2016), a dita “regra de ouro” (nela, para o povo, nem a certeza de água tratada, que também é um bem mineral, está garantida), o processo de afastamento do papel do Estado na garantia dos direitos fundamentais previstos na Constituição.

A EC 95/2016, ao estabelecer o teto de gastos, dá autorização para o Estado não cumprir com políticas públicas e garantir os direitos sociais fundamentais para a manutenção dos pilares determinantes na sustentação de um Estado Democrático de Direitos, ainda que capitalista.      

Para se ter uma ideia do tamanho das violações, sequer os fundamentos do Art. 1º da Constituição Federal (CF) são preservados.

Soberania, cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, são fundamentos constitucionais que, juntos ou separadamente, estão em processo contínuo de destruição.

São letras mortas que se decompõem e se tornam inférteis, pois nem mesmo a independência e a harmonia dos Poderes da União, previstos no Art. 2º da CF, existem.

Seguir a maioria dos sinais emanados dos Três Poderes significa reforçar o descontrole no qual o país se encontra. Sinais trocados para se conseguir chegar, mesmo que minimamente, próximos ao estado de bem-estar social. São sinais, quase todos, que nos levam para as profundezas do mal. Ambientes pestilentos, mórbidos, periculosos, onde só a presença já nos conduz ao adoecer, à dor, sofrimento… Exagero? Será?

Quando tampouco são cumpridos os objetivos fundamentais da República descritos no Art. 3º da CF: “construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, jamais teremos uma nação soberana que intua os princípios reais de uma “independência nacional” que garanta a “prevalência dos direitos humanos” como forma de reger suas relações internacionais, conforme preceitua o Art. 4º da CF.

Não é sem sentido sustentar que é extrema a contradição intencionada no Art. 5º da CF. Nem a igualdade perante a lei está imaculada. É cada vez mais ampla e fatal a distinção da lei, principalmente aquelas adstritas a certas naturezas de gênero, racial e étnica. Aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país, os direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade têm sido a cada dia mais violados. Infelizmente, tal distinção tem submetido seletivamente a população brasileira à tortura, a tratamento desumano ou degradante, aos quais o extermínio coletivo é admitido como inerente à realidade.

É impossível imaginar os direitos sociais (Art. 6º da CF) como: educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados, sendo paradigmas defendidos pelos Poderes da União, sem deter a EC 95/2016.

Como reconhecer que o Art. 7º da CF, de fato, vige no país e os Três Poderes o preserva como direito  da classe trabalhadora, urbana e rural, para melhorar a sua condição social, quando sequer uma política nacional de valorização do salário mínimo é mantida; quando piso salarial, fixado em lei, nacionalmente unificado, na realidade é a negação do atendimento às necessidades vitais básicas de uma única pessoa, que dirá de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social; quando aquilo que mais ocorre no ambiente e nas condições de trabalho é a ampliação dos riscos ditos como “inerentes” ao trabalho, por meio da revisão de normas de saúde, higiene e segurança, principalmente durante essa crise sanitária?

Evitando ficar restrito em demonstrações contínuas das derrogações constitucionais forjicadas pelos Três Poderes, acredito que, para o momento, a principal amostra da desgraça mortífera do que é a EC 95/2016, é que ela não deixa que o Estado brasileiro (nacional, estadual e municipal) cumpra com o Art. 196 da CF, já que os efeitos dessa emenda intensificam a dizimação seletiva do povo brasileiro.

A vigência da EC 95/2016 agrava ou até mesmo impossibilita superar o trágico momento em que vivemos, porque a saúde deixa de ser uma prioridade. A saúde que deve ser um direito de todos, deixa de ser um dever prioritário do Estado, uma vez que as “políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”, são tratadas como atos de improbidade administrativa se entre defender a saúde e a vida estiver em risco garantir a preservação oculta da especulação rentista e do patrimônio do capitalista.

A segunda etapa de destruição

“Por onde passei, tendo tudo em lei, eu plantei o nada”. (CASALDÁLIGA, Pedro. Confissões do latifúndio).

A segunda etapa de destruição: dos direitos trabalhistas e previdenciários – faz com que reitere aquilo já demonstrado noutra ocasião. Nela apresentei uma série de violações a princípios fundamentais de sobrevivência e civilidade que tiveram sua legitimação regulamentada logo depois de sancionada a EC 95/16. Se a redução do orçamento da União tinha como objetivo cortes de gastos dirigidos às políticas públicas, logicamente atingiu em cheio os direitos fundamentais e sociais, conforme já foi dito e isso implica, automaticamente, na limitação ou abandono oficial do papel do Estado, o que (hipoteticamente) poderia recair sobre as corporações do capital. Por isso, concomitantemente, era necessário anular qualquer possibilidade desse efeito. Isso tem um custo elevado a quem trabalha ou depende do trabalho para viver.

Um mal social decorrido das mais perversas práticas da exploração capitalista (degradação socioambiental, jornada excessiva, assédios, acidentes, adoecimento, mutilação, invalidez e morte no ambiente de trabalho, além de calotes e/ou fraudes trabalhistas e previdenciárias), onde a justiça instituída é do capital, precisa transferir o seu custo e garantir a absolvição criminal de suas práticas, de seus crimes, sem, entretanto, transferi-los para o Estado.

Decididamente há a transferência formal (legal) da pena do criminoso para a vítima. Uma pena que, além da extorsão legitimada, também a sevícia, a degradação extrema da vida, tem sua conformação delineada na forma da lei e o custo daí derivado e arbitrado numa sentença passa a ser, via de regra, transferido e imposto à classe trabalhadora, seja ela empregada ou não, aposentada ou não, desalentada, adoecida… 

Eis aí, de novo, tais violações reguladas em leis e na Constituição:

– Nas leis 13.429/17 – terceirização irrestrita; e 13.467/17 – reforma trabalhista, na qual a degradação das condições e proteção social do trabalho é bem simbolizada no contrato zero-hora[1], que aqui usa a máscara do trabalho intermitente e cria uma série de óbices à organização laboral; desde a ruptura da autonomia das assembleias até a violação impeditiva às formas de arrecadação para a ação sindical;

– Nas leis 13.844/19 (MP 870/19) – estruturação ministerial que extinguiu o Ministério do Trabalho e da Previdência. Ato simbólico e real da interdição do diálogo do executivo federal com a classe trabalhadora. Cessar, calar a voz do trabalhador e da trabalhadora; 13.846/19 (MP 871/19) – que sob o pretexto de combater a fraude na Previdência praticamente restringiu o acesso ao benefício acidentário e/ou auxílio doença e promoveu intensamente a cessação de benefícios de mesma natureza. Pode-se afirmar que essa MP foi o balão de ensaio da PEC 06/2019 – “reforma” da Previdência (EC 103/19);

– A Lei 13874/19 – derivada MP 881/19, apelidada como a MP da liberdade econômica e minirreforma trabalhista, que, dentre outros pontos adversos a quem está empregado, ao desobrigar o controle de ponto em empresas com até 20 empregados, afeta o controle de jornada, intervalos intrajornada e hora extra…, dando carta branca aos patrões para ampliar acordos individuais nesse sentido;

– A Emenda Constitucional 103/19 (PEC 06/2019) – “reforma” da Previdência, que, em meio a seus ataques aos direitos previdenciários, praticamente descaracterizou a aposentadoria por condição especial de trabalho onde o insalubre e o periculoso permanece sem controle e mantêm a doença, a mutilação, a invalidez e a morte como um espectro normatizado imposto e administrado pelos Três Poderes à classe trabalhadora.

Poderia ampliar esta série de violações, mas o primordial é caracterizá-las como admitidas pela maioria dos agentes públicos (políticos, parlamentares e juízes). Não é demais reiterar que tem sido a habitualidade criminal dos setores econômicos e empresariais, organizada por meio do costume patronal de praticá-la que constituiu um arcabouço legal de ilícitos acobertados numa nova (velha) ordem (desordem) legislativa (escravocrata/desumana).

Ponderando bastante as palavras, é claro, a impunidade grassa nas altas castas das elites representadas e alçadas às cúpulas do Estado, já que se nutrem em elevada conjura, praticamente sem medida, protegidos por forte aparato de segurança e conforto em Brasília, na praça dos Três Poderes da República – e é bom lembrar que o que temem (diria que nem tanto assim) é o povo (sua possível revolta), se protegem para impedir sua aproximação, apesar de se refastelarem com seu próprio recurso.

A terceira etapa da destruição: da vida

Esta cova em que estás com palmos medida
É a conta menor que tiraste em vida

É de bom tamanho nem largo nem fundo
É a parte que te cabe deste latifúndio

Não é cova grande, é cova medida
É a terra que querias ver dividida

É uma cova grande pra teu pouco defunto
Mas estarás mais ancho que estavas no mundo

É uma cova grande pra teu defunto parco
Porém mais que no mundo te sentirás largo

É uma cova grande pra tua carne pouca
Mas a terra dada, não se abre a boca
(DE HOLLANDA, Francisco B. / MELO NETO, J. Cabral. Funeral de um lavrador)

Essa etapa é a consumação daquilo que representa o abandono do Estado a seu povo. O povo de uma nação enfileirado para um abate continuado e ordenado pelas instituições mais poderosas da União, que o deviam proteger.

Quatro presidentes. Poderes máximos da União reunidos, ou mais unidos. Anunciação histórica no século XXI: uma mesa comum poderosa para o combate do males pestilentos e seus efeitos.

Os sinais têm sido tenebrosos. Prenúncios funestos. Tomara que não seja a consolidação dos ajustes da medida para uma cava maior, para a extensão de uma vala comum, de uma cova grande para os defuntos pequenos, já que os defuntos grandes, por sua justa (ampla) medida são assépticos e cremados, afinal, por ironia ou falsidade, nem mortos infestam seus próximos.

Por que insistir nisso? Alguns dirão. A razão é simples: o governo Bolsonaro e a maioria parlamentar do Congresso Nacional tem priorizado a saúde e a vida do povo brasileiro durante a pandemia de Covid-19? Quais as suas pautas e prioridades?

Um dos motivos de insistir nisso, deve-se, é importante lembrar, ao fato de que todas as vezes que Bolsonaro substituiu seus ministros da saúde e suas equipes, não foi para alterar a condução do descontrole pandêmico, mas sim para sustentar seu controle pessoal na intensificação da disseminação desse mal infestado em todos os poros das populações empobrecidas, vulneráveis, desalentadas, desesperadas pela sobrevivência. Desde a primeira queda ministerial, o que assistimos ocorrer na pasta da saúde foi uma corrida pessoal do presidente na busca de quadros que tivessem rígida identidade com suas práticas funestas. Portanto, nunca esteve na busca de alguém com predicados avançados em ciência e medicina, mas, sim, daqueles que estivessem dispostos a ignorá-las ou que fossem totalmente ineptos à função, basta vistas de um generalato que se acumplicie a um plantão no qual não é o remédio e nem a cura que devem ser prescritos ou previstos, mas o veneno e a morte são o que devem ser disseminados, com isso, havendo concordância o cargo é concedido: nessa gestão governamental, jamais se pode esquecer, o grande ministério (da fé ou não) é o da doença e da morte.

Como se anula essa ação governamental? Se contrapondo ou se unindo a ela? O que faz a maioria dos demais Poderes? Priorizam medidas (legislativa ou judicial) para conter, impedir essa sanha pútrida e mortal personalizada numa cáustica e insana liderança, ou potencializam suas ações legitimando os seus atos em ritos legislativos, ou referendando suas ações em sentenças, ou na ausência delas, inoculando, assim, decisões contaminantes na justiça ao ponto de degradar ainda mais a resistência social e exterminar seletivamente o povo brasileiro?  A depender da resposta, e esta, pelo menos por enquanto, não é a que a população brasileira e até a mundial espera, daí o segundo motivo. 

Miguel Nicolelis advertiu sobre a confissão pública de Bolsonaro, sua renúncia às obrigações constitucionais de presidente. Nem isso parece ter sido suficiente para o legislativo e o judiciário responsabilizá-lo por suas práticas destrutivas à nação e população brasileira.  

Quando o presidente manda um documento ao Supremo Tribunal Federal pedindo a revogação de poucas medidas que ainda conseguem proteger alguns brasileiros desse vírus letal, ele dá uma declaração pública e notória, assinada e reconhecida, em cartório para todo o Brasil e para todo o mundo, que ele renunciou à sua obrigação constitucional de defender o povo brasileiro de um inimigo letal...

Sequer isso é uma afecção que altera o comportamento do Legislativo e do Judiciário. Ao contrário. Ademais as altas cúpulas dos Poderes instituídos são convidadas pelo presidente Bolsonaro (e aceitam o convite) para participar do Comitê de Coordenação Nacional para Enfrentamento da Pandemia do Covid-19, do qual, assumida e definitivamente os coordenará. Exatamente ele, o presidente, que, exaustiva e deliberadamente, lidera e traz para si todas as ideias e práticas de um ente carregado de pulsão de morte, com certeira intenção de diariamente levar a maior parcela do povo brasileiro em direção ao extermínio seletivo, possuído por sinais claros de um necrófilo em êxtase, com ações tentadoras para obstaculizar com sensacionalismo e mentiras a ciência, a pesquisa, a medicina e impedir qualquer ação preventiva, ou pela vida, em todos os sentidos e espaços ou ambientes, dos quais o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF) são preferenciais para vigorar seus instintos e intentos.

O que vai acontecer? Quiçá seja só hipótese: o colapso sanitário instalado (uti’s, oxigênio, kits de intubação, funerário…) será legitimado em lei. Se a competência desse Comitê for criar ou orientar “medidas para enfrentamento da pandemia da Covid-19 e dos problemas econômicos, fiscais, sociais e de saúde decorrentes”, então, já de cara posso citar duas flagrantes contradições.

No entanto, antes de apresentá-las, cabe ressalvar que de pouco adianta o senador Rodrigo Pacheco reconhecer que o Comitê, ao qual ele irá se submeter, veio com um ano de atraso. Isso é muito pouco, pois o mais relevante fica ignorado. Não só por ele como presidente do Senado, mas ao fato de os presidentes das duas casas legislativas (Câmara e Senado) e do STF não colocarem em xeque a sujeição a uma coordenação que sabidamente – aclamada aos quatro cantos e centro do planeta – é letal e contrária à qualquer estratégia e ação no enfrentamento do que propõe.

Será que eles, os presidentes da Câmara, Senado e do STF, não se recordam da fatídica reunião de 22/04/2020, na qual a aclamação da ampliação da passagem da boiada foi anunciada? Afinal, está próximo o marco de um ano dessa asquerosa reunião ministerial. Os mais venerados e fogosos dos ministros arrombadores, Paulo Guedes e Ricardo Salles, estão ativos e permanecem ávidos, junto com o mandatário da nação, para aproveitarem e se labuzarem no cio da miséria, da fome e da peste, do qual são emissários para levar a termo o sacio prazeroso do mercado às custas seletivas de cadáveres. Suas chantagens (anti-humanas e antissociais) simbolizam a dimensão parasitária e do vício de uma elite que se apoderou de todos os espaços do poder público e só não despachou seu próprio chacal do comando do país porque tem nele um executor mor nestas hostes de destruição.   

Retomando às contradições, a primeira, a começar pela própria coordenação com os seus interesses incessantemente personalíssimo. Uma coordenação cuja competência é tida, de longe, mundialmente, como a pior no exercício de combate a pandemia do Covid-19, por óbvio e consequência, também nas demais adversidades que se predispõe enfrentar.

A segunda, pela identidade das pretensões dos participantes, já que a maior parte das medidas que passaram pelas duas casas do Congresso Nacional, vindas do Executivo Federal, não tiveram como prioridade a vida e a saúde da população, tampouco o enfrentamento da pandemia e a estas, não fosse sintonia e interesses em comum, tanto celeridade quanto pauta seriam outras, pois não abdicariam daquelas que são suas funções constitucionais e primordiais num momento de emergência, calamidade, crise humanitária, principalmente às custas do extermínio sem fim até mesmo de seus eleitores, correligionários, pares de mandato, além de familiares e amigos.

Exemplos dessa identidade, de que esse governo e os dois líderes do Congresso Nacional estão em sintonia: redução orçamentária dos recursos da saúde, da educação, da ciência e tecnologia, mesmo no trágico cenário vivido, cuja emergência aponta como vital ampliar investimentos nesses setores. Nesse cenário, há a miséria, a fome, o desemprego, o desalento que se agravam, contudo as deliberações conduzidas no Congresso reduzem o valor e número de beneficiários do auxílio emergencial e agudizam esse estado de penúria. Medidas, novamente tomadas, tendo por base não o cumprimento das responsabilidades do Estado, mas sim sua omissão e cumplicidade com a ascendente hecatombe instilada pela proposital e amistosa relação da maioria parlamentar, sob a liderança dos presidentes da Câmara e do Senado, com a pior administração da pandemia no mundo – não se pode esquecer – aliada a expansão sem fim da desigualdade e injustiça social por aqui vivida.

Uma sustentada frieza que não me permite outra afirmação: omissão ou cumplicidade com todos os males e atos governamentais de Bolsonaro e equipe, dos quais até mesmo o direito fundamental, primário e vital de respirar e alimentar é negado. Supliciam e deixam morrer – com requintes extremos de crueldade e aparente estado de êxtase, por puro capricho, ideologia e/ou disputas políticas – quem deveriam proteger como dever de ofício constitucional e humanitário. Mas, não! É o que revela as matérias e medidas políticas elencadas no Congresso Nacional, tendo como referência só os primeiros meses de 2021, pelos presidentes da Câmara e do Senado, Artur Lira e Rodrigo Pacheco, escolhidos e apoiados por Bolsonaro, justamente nesse momento da história, em que é constituída e se expande a maior mácula de uma peste no país e no mundo, o pior estágio da pandemia entre nós.

Últimas considerações

Perguntas foram feitas, todavia algumas derradeiras ainda são necessárias para concluir:

1ª –  A população trabalhadora, empregada ou desempregada, será assistida após o estado de calamidade?

2ª – A desproteção social em ascendência, desde 2016, terá o seu curso alterado?

3ª – Os políticos do caos serão convertidos ou sofrerão “reconversão legislativa” para a reconstrução da ruína social criada por eles próprios?

4ª – O judiciário irá rever suas decisões e reformular suas sentenças para revalidar a desconstituição de direitos, visando firmar o sentido real de uma justiça social, na qual a desigualdade não seja letra frequente, literalmente efetiva e legitimada em seus atos?

Respostas, provável que diversas, mas, aqui, concluirei com apenas três delas:

A primeira, é que o governo sequer dissimula sua preocupação com as classes trabalhadoras. As grandes corporações com seus investidores poderosos, patrões máximos, são os que sofrem e precisam de proteção ampla e irrestrita do Estado brasileiro.

Ao invés de mover as estruturas do Estado para proteger e garantir a integridade física e mental de quem trabalha, faz exatamente o contrário quando em suas medidas hibridas (simultaneamente, sutil e cavalar) de letalidade  induz a classe trabalhadora a uma essencialidade vil, ao entusiasmá-la sofregamente a produzir, contagiar-se para a busca de uma imunidade exclusiva à sustentação da economia e do lucro, à cáustica vitalidade do “deus mercado” e, morbidamente, o legislativo, em sua maioria, lava as suas mãos e dá a sua chancela a estes atos.

Aqui, já antecipo a segunda conclusão ao aliá-la à primeira, afinal lembrei-me do ministro Gilmar Mendes quando citou Rui Barbosa. Só que também o incluo como um dos sujeitos ativos na própria citação, basta observar suas posições na escalada da destruição dos direitos fundamentais e sociais do trabalho ou nas violações aqui assinaladas. Em paráfrase a Rui Barbosa, acrescendo o recorte delimitado pelo ministro, posso dizer que:

Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de estado, interesse supremo, como quer te chames, prevaricação judiciária ou legislativa, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom e o mau ladrão salvaram-se. Mas não há salvação para o político e o juiz covarde.

A terceira conclusão, e encerro, numa catálise praticamente depuradora das práticas do executivo e do legislativo, é que convivemos com um judiciário, em sua parte mais significativa, principalmente nos tribunais superiores, omisso por conveniência com essa irrestrita precariedade.

A conveniência aliada a uma conivência espúria já se tornou explícita e é diretamente compensadora às elites empresariais e econômicas. Sequer o flagelo pandêmico planetário, a penúria extrema, que revela a emergência de um Estado protetor ao povo trabalhador ou que é dependente do trabalho, direta ou indiretamente, parece conter a avidez pestilenta da sanha pelo lucro a qualquer preço e, para uma desgraça maior, o judiciário, em suas cortes, ditas superiores, por sua maioria, de modo (in)condicional, só se move para a sua manutenção. 

* José Reginaldo Inácio é Sindicalista, Presidente da Nova Central – NCST, Secretário de Educação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria e Diretor de Estudos e Pesquisas do Observatório Sindical Brasileiro “Clodesmidt Riani” – OSBCR.


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